Sono dos Justos - Correspondente Internacional

Ele acordou assustado. Eram 3 horas da manhã. O pesadelo tinha sido terrível. Sua esposa segurava sua fria e suada mão. Agora acordada de vez depois de ouvir um grito de terror. Coisa não presenciada apesar dos 20 anos de convivência do casal.

Ele sentia seu coração batendo forte. Nunca tinha tido problemas cardíacos. Hoje porem sentiu uma dor que deveria ser muito parecida com o famoso e perigoso ataque cardíaco. Os batimentos fortes lembravam a bateria do seu grupo de Rock favorito. O grupo que acabou depois de não ter mais público com a invasão de musicas um pouco mais populares como hip-hop e a pop que surgiram com a queda do custo de produção. A chegada de computadores e sintetizadores são capazes de ajustar qualquer desafino no tom dos garotos e garotas da geração Y.

"E agora meu amor? Já melhorou?" Perguntou a esposa sempre dedicada e carinhosa.

Ele não falava nada. Ainda respirava ofegante. "Água. Água." Suplicou baixinho.

A esposa saiu correndo do quarto em direção à sua cozinha. Foi até a geladeira de aço inox tirar água no sistema automático. Pegou um copo no armário acima do reluzente back-splash instalado mês passado e que custou os olhos da cara. Tinha que colocar. Depois que viu tamanha beleza em uma visita na casa da amiga com quem pouco simpatizava, mas que visitava a cada duas semanas para colocar o papo em dia.

“Como pode ser?” Pensou ele. Sonho tão real... Ele ainda não acreditava no ocorrido.

Desde criança sonhava corriqueiramente. Sem maiores paranóias ou problemas Freudianos. As vezes dava sorte e tinha excelentes sonhos molhados. Na maioria das vezes os sonhos eram ingênuos e irrelevantes. Não era de ler muito, mas sabia e conversava sobre tudo. Se considerava um cara normal. Normalmente não lembrava o que sonhara m
as este sonho tinha sido diferente e impactaria o destino de sua família. Sua empresa. Seus filhos. Seu País.

Teria que contar para sua mulher? Como explicar a situação? Ela analisaria o sonho. Imaginaria coisas. Com os anos de convivência tinha que ter cuidado. Ela desconfiaria se não falasse a verdade? Seria parecido quando ele teve que omitir a divida no Banco? Ou a possibilidade de perder o Apto de luxo devido aquele investimento errado na Bolsa reflexo de uma dica do seu melhor amigo? Não sabia o que pensar.

Eles tinham um sobrenome forte na atual sociedade local. Característica pessoal mais conhecida era sua sobriedade em momentos difíceis. Aprendeu a gostar de vinhos para entrar em um grupo de amigos cultos. De vez em quando se dava o luxo de escolher o vinho nos jantares. Não arriscava e escolhia o mais caro. Ainda mais quando sabia que dividiriam a conta. "Este italiano é ótimo. Tomamos na nossa última viagem aos Países Nórdicos.” Essa é a nova tendência… já que Roma e Paris para ele, virara coisa de Chineses.

O sucesso e o conforto financeiro em anos anteriores vieram da grande sacada que teve na virada do milênio. Deixou o emprego de gerente em uma empresa de logística na hora certa. Fez um 2o grau razoável em escola do bairro. Entrou na faculdade privada com 22 anos depois de tentar alguns vestibulares. Depois de formado um Tio o indicou para um cargo inicial em uma empresa de logística. Em 2004 depois de alguns anos já se sentia preparado para investir em seu próprio negocio. 


Comércio eletrônico. Trabalhou com seriedade. Claro. No Brasil não tem jeito… Teve que fazer uma ou outra pedalada fiscal e deixou de pagar alguns impostos. Mas tinha entrado na justiça e sabia que iria demorar. Iria pagar um dia. "O problema é esse governo que insiste em atrapalhar os empresários." Sempre reclamava. Hoje tem quase tudo legal. Conseguia bom lucro devido a extravagante margem que colocava para revender todo e qualquer tipo de supérfluos no seu site. Desde pequenos apetrechos para casa, passando por eletrónicos e inutilidades de 2a e 3a linha da China para consumistas refinados que são apaixonados por marcas internacionais.

"Vou falar e serei julgado por todos.” Pensou novamente. Sabia do risco. Não confiava na esposa. Ela poderia soltar e acabar com sua carreira. A amada tinha uma lingua de cascavel. Com certeza contaria para alguém no chá da tarde que tomava todas as semanas com amigas. Era um pequeno e seleto grupo de grandes amigas com sorrisos e jovens rugas já corrigidas por excelentes médicos especialistas.

"Não! Melhor mentir!” Decidiu confiante.

"Ela já está voltando com a água. Vou falar que foi apenas um sonho devido ao filme que vimos na noite anterior...."

Tinham visto em sua TV de Tela Plana Curva de 75” um romance lindo que baixou na internet. O filme era bobinho mas muito engraçado. Coisa da nova Hollywood politicamente correta. O enredo mostrava uma linda ruivinha independente e inteligente que vivia em Boston e fazia doutorado em Harvard. Vivia numa correria frenética. Inconscientemente apaixonou-se pelo namorado da amiga com quem dividia o apartamento de 450m2 no centro da cidade. O final deslumbrante era em uma linda praia no "The Hamptons". Seu casamento dos sonhos. Final de tarde ameno sem vento olhando nos olhos do lindo noivo que a esperava no altar. O noivo era um adevogado de sucesso formado em Chicago. A ex-amiga apesar de passar 56 min do filme entre brigas, palavrões e sacanagens 
aceitou o tombo e estava de novo como "BFF" rindo nesta tarde deslumbrante, perfilada junto com as outras 12 damas de honra, tinha sua última fala gritando aos quatro ventos: “Tamo juntas querida!”. Ela também tinha encontrado sua cara metade. Um lindo Indiano/Americano do mercado financeiro de Wall Street...

"É... Não dá para culpar o filme”. Só me resta uma opção...” Decidiu.

“Aqui está a água meu bem. Me conte o pesadelo. Estou morrendo de preocupação. Foi sobre nossa divida no Banco? Sobre a namorada da nossa filha? Foi sobre o IPTU do Barco de Angra?”

“Não meu amor… Você sabe que te amo e confio 100% em você não é mesmo? Então por favor não conte para ninguém... Ok? Sonhei que estava caminhando pelado no final de tarde pela Avenida Paulista depois do jogo do meu Parmeira. Só isso. Assustei com a cena e gritei. Sei lá... Muito louco. Um absurdo. Vamos voltar para cama e dormir...”

Ela não acreditou, mas sabia que ele tinha suas razões.

Voltaram para cama onde conjuntamente esqueceram do ocorrido. Já no próximo segundo estavam a deliciar mais uma vez o sono dos justos.