Perigo em Carta de Amor - Arthur Lopes Filho

“Também Maneca Dantas não sabe por que diabo essa gente engana marido, com perigo se dá ao luxo de escrever cartinhas. Coisa de idiota…" (Jorge Amado)


Aroeira
Eles sabiam que se Dr. Juca do Prado viesse a descobrir, mandaria matar os dois. Ele não era homem de alisar chifre e muito menos aturar traição. Ele doutor, advogado de respeito, de grandes brados e vociferações no fórum, livrara muita gente da cadeia. Nunca aceitara ser da acusação, isto é problema de promotor público. Dona Cadocha do Prado, sua mãe, ensinara-lhe sempre que o ofício é defender, quando se procura motivo pelo chamado impensado ato, acaba se encontrando. Até Almiro do Fedegoso ele conseguiu absolver.

Caso difícil, matação cruel, facas amoladas cortando tudo e depois degola. Pior é que o matado era o patrão, poderoso e prepotente, capaz de humilhar os empregados. Betão, dono da Fazenda Fedegoso, apaixonou-se pela Marita, filha de Almiro, seu empregado. A menina, menina mesmo, tinha 14 anos e esplendorosa beleza cabocla. Ele a obrigou a tomar vinho do Porto até perder o sentido e então fez o que quis. Foi achada pela mãe. Quando Maria conseguiu contar foi dizendo que só se lembrava de um vinho que o fazendeiro mandava ela tomar, gole após gole. Lembrava ainda de muita dor entre as pernas e nada mais. Almiro confessou tudo ao delegado:

”- Primeiro dei uma porretada na cabeça do Sêo Betão. Arrastei ele para o açougue da fazenda, amarrei ele bem amarrado. Esperei ele acordar e comecei cortando seu saco, depois a cabeça do pau, dei corte nas duas virías, abri sua barriga e esperei ele sangrar, aí cortei sua cabeça. Boas são mesmo essas facas, a gente com elas destrincha uma vaca em pouco tempo. Não tive um pingo de pena nem com os berros de Sêo Betão. Ninguém faz isso com filha minha e fica bestando por aí. É verdade que fugi para evitar o tal “fragrante”, mas hoje conto tudo e não deixo dúvida.”

Dr. Juca assumiu a defesa mesmo Almiro não podendo pagar, foi levado por esquisita necessidade de ir contra o Betão. Sabia que poderia demonstrar que todo pai que tem sua filha deflorada nos quatorze anos, debaixo de um pé de jambo, quando foi embriagada pelo homem mais velho com o torpe objetivo disso, deve fazer o que fez.
Começou com um brado que ficou famoso: “- Senhor Juiz, senhores jurados, todos que aqui estão, peço-lhes vênia para começar minha fala dizendo que o promotor público quer nos confundir. Veio com sua voz esganiçada dizer que desde Adão e Eva a genitália feminina tem o poder de levar à perdição e nem por isso Deus matou os dois. Sei que alguns se perguntaram que “mané genitália é essa?” Não sou metido a besta, prefiro me expressar pela língua do povo, esta tal de genitália nada mais é que o escondido no entrecoxas da mulher. Todos sabemos que lhe é dado o nome de perereca até à idade de a menina desabrochar, verter por ela o primeiro sangue que anuncia que pode dar vida a um novo ser. É como a borboleta saindo do casulo. Daí passa a ser chamada de xoxota. Marita, uma menina de 14 anos, mal havia entrado na fase da xoxota, era pura e virgem que vertera o primeiro sangue fazia pouco tempo. É bela como as caboclas de nossa terra, namorar, noivar e casar no tempo certo era seu destino. E o patrão se julgando dono de tudo, o monstro Betão, aproveitando a embriaguês dela, provocada por ele, enfiou o membro dele, qual pedaço de aroeira, no escondido dela, o mais sagrado lugar. Tirou a sua flor que mal havia nascido, sem ter consentimento. O sangue que saiu não foi o sangue da vida, mas o sangue da violência. Senhores jurados, vejam vocês a pobre menina tão arrombada, a tristeza da mãe contando tudo para o pai, a coragem do pai arrastando o safado para o açougue e vem esse promotor falar na genitália de Eva que não pode ser comparada com a xoxota de Marita. Quer nos fazer de bobos. A de Eva foi feita por Deus, a de Marita nasceu em seu entrecoxas. Eva chamou Adão para se deliciarem, Marita foi embriagada pelo safado do Betão. Deus expulsou a dupla do Paraíso, Almiro fez o que faria qualquer pai que tem amor e respeito pela filha. Ao promotor somente podemos dizer que não vem que não tem, melhor procurar seus amigos sem tutano. Não preciso falar mais nada, quem se tem respeito e amor às filhas, dá tratamento de homem aos safados aproveitadores. Tenho certeza que nenhum do júri irá condenar Almiro por ter cortado cada pedaço da safadeza do patrão.”.

O resultado dos jurados foi de 7 a 0 pela soltura do réu. O Juiz de nome Gabriel, mandou dar liberdade a ele na hora. Almiro nem esperou o outro dia clarear, ganhou rumo para o outro lado do mundo, sabia que naquela cidade não mais conseguiria emprego de vaqueiro, profissão que ele amava. Não mais se teve notícias dele e nem de sua família.

Quem na época muito sofreu foi Dona Rosinha esposa de Dr. Juca. Chorou dias e dias seguidos, diariamente passou a frequentar o confessionário do Padre Messias de onde saía carregada pelas amigas para a mesa de comunhão. Dona Cadocha, sua sogra, tomou boas providências. A primeira foi determinar que as refeições da nora fossem somente de canja de galinha engrossada com fubá de munho. A segunda foi levá-la para consultar com um psiquiatra da capital que determinou tratamento com eletrochoque. Voltou meio abestada mas curada. Todos comentaram como é bom ter uma sogra assim.

Correu o tempo sempre com grandes vitórias para Dr. Juca do Prado. Até da Capital do Estado vinham procurá-lo se era uma defesa muito difícil, ganhava todas. Se o tempo correu com vitórias, trouxe também velhice. Veio a hora de aposentar, principalmente agora que Dona Cadocha havia morrido e Dona Rosinha quase que mudou para a igreja. Ela chegou a confessar duas vezes no mesmo dia, não com o Padre Messias que se dava ao luxo de dizer “- Comigo a senhora já confessou demais, procura outro, ando cansado.” Uma manhã ela não se levantou, foi como disse sua grande amiga Miloca: “- Quando acordou estava morta, coitada!”. Dr. Juca muito sofreu, velho e sozinho no mundo, não haviam tido filhos. Na missa de Sétimo Dia todos ficaram profundamente tristes com a tristeza dele. Na de Trigésimo Dia ele, mais recomposto, foi capaz de agradecer a solidariedade de todos. Dr. Juca naquele mesmo dia procurou encontrar mais consolo nos livros de rezas de Dona Rosinha, acabou foi encontrando um maço de cartas amareladas no fundo do baú. Eram de Betão falando de amor e marcando encontro com ela na casa de Siá Mundica, quase a última da cidade na época. Ela sempre disse que ia lá para cumprir o mandamento da caridade, era verdade só que com outro gosto. Ia levar coisas para o sustento de Siá Mundica, mas muito mais para chorar na aroeira de Betão.

Recomposto do choque, Dr. Juca caiu em gargalhadas compulsivas. Lembrou-se de Almiro destrinchando o safado e dele, em pleno prestígio, livrando o matador da prisão. Naquele mesmo dia ele passou a mão nas partes de Miloca.


Arthur Lopes Filho