Urtigão e o Abuso de Autoridade

A discussão em torno do abuso de autoridade anda quente: guerra aberta entre poderes, Legislativo e Judiciário se digladiando em torno de algo que é comum aos dois,

Executivo está de fora e anda de facho baixo. Há muito vem apanhando.

Michel Temer é cauteloso demais. Vai acabar se afogando na cautela ou no caldo de galinha.

Vamos fazer algumas digressões em torno da autoridade. Diz a Constituição, apelidada "Cidadã" por Ulisses Guimarães, "que todo poder emana do povo e em seu nome é exercido".

Isso posto, depreende-se que as verdadeiras autoridades somos nós e concedemos o direito de exercê-la temporariamente ou por tempo maior, aos poderes Executivo, Legislativo ou Judiciário.

No Brasil, juízes, delegados, promotores e procuradores são concursados e tem o cargo praticamente vitalício. Nos USA, são eleitos. São escolhidos em votação popular como os outros titulares de outros poderes. É mais lógico e mais equânime. Nada melhor para castigar um mau servidor do que o escrutínio e a vontade popular.

Por essa razão, a mais antiga do mundo e a mais próspera, apesar de seus detratores, funciona há mais de duzentos anos. Quem dera que tivéssemos aqui pelo menos dez por cento do que possuem por lá .

O Brasil no meu entender, é o pais que conheço onde o abuso de autoridade é usado e abusado à exaustão. Terra da carteirada, do quem sabe com quem você está falando, vou mandar-lhe demitir e vou falar com fulano a seu respeito. Terra de suborno de policiais, de fiscais, de furar fila, de dar um jeitinho, de atropelar a fila do aeroporto, não pagar ingresso no teatro, terra da meia entrada e outros mimos típicos de nosso País tropical.

Vou narrar agora, um fato real, acontecido em Itaúna, nos anos sessenta, protagonizado por um juiz de direito com a anuência de advogados, promotores, policiais, jurados e quem mais estivesse na sessão do júri do fato.

Julgava-se um crime de pouca monta. Um cidadão era julgado por tentativa de homicídio. Tinha atirado na sua mulher, com uma espingarda "mijoleira", de carregar pela boca, feita por ele mesmo. Acertou o alvo sem muito dano. No ombro da indigitada. Razão do tiro: ciúmes. Desconfiava que a mulher o traia com um compadre. 

O fórum da cidade funcionava na praça Dr. Augusto Gonçalves, esquina de rua Silva Jardim. Ao seu lado, a cadeia, um prédio lúgubre, de paredes grossas, bem em frente ao Automóvel Clube. 

O advogado de defesa, José Luiz Gonçalves Guimarães, esmerou-se na defesa. Professor de inglês, dado a recitar Shakespeare, recitou trechos enormes da "Balada do Cárcere de Reading" de Oscar Wilde. Em inglês, para um corpo de jurados embasbacado.

Sua teoria, baseada no genial poeta e romancista irlandês: o homem roído pelo ciúme, mata aquilo que ele ama. Muito para um crime de segunda linha, ocorrido num distrito de Itauna, de nome Pasto da Éguas.

Enfim, tudo vale, principalmente no mundo do Direito. Voltemos ao abuso de autoridade.

O juiz era um homenzarrão, grande e gordo, que me permito omitir seu nome. Depois do meirinho ler os autos e a defesa e a acusação inquirir o réu, chegou a vez das testemunhas. Todas humildes. Gente de povoados, de lida na lavoura. Um deles, ao ser chamado, sem saber dos preceitos que regiam o sacrossanto salão do júri, entrou no recinto com um chapéu na cabeça. 

Foi o bastante: o juiz, de cima de seu metro e noventa, pilotando quase cento e cinquenta kilos, debaixo de uma toga que lhe avolumava o porte, já começou berrando:

- "Moleque, desclassificado, filho de uma cadela, sem respeito . Como ousa entrar no recinto com o chapéu na cabeça”, desancou o pobre homem a mais não poder e deu ordens.

- “Tranquem esse infeliz na cadeia ao lado e joguem água fria na sua cabeça para esfria-la. Deixem-no lá”.

E lá se foi o pobre diabo de botinas de goma, paleto caqui e calça porta de loja para a cela, com chapéu amarfanhado nas mãos.

Passado o momento de demonstração de autoridade, o júri continuou. Outras testemunhas foram ouvidas e por fim o juiz mandou buscar o trancafiado. 

Vinha amarelo, cabisbaixo, da cor daqueles que entram na vida pela porta baixa da humilhação. Testa branca a destoar do resto do rosto e pescoço queimado de sol. O chapéu desaparecera. Respondeu às perguntas com monossílabos. 

O juiz do alto de seu tablado saboreava seu momento de glória. O réu foi absolvido por sete a zero. A infeliz testemunha voltou para o seu "Pasto das Éguas" e o juiz, para não contrariar os fatos, terminou seus dias gordo e incensado como desembargador em Belo Horizonte.

Uma nota:
Corre a boca pequena que juiz e médico acham que são Deuses. Desembargadores e argentinos têm certeza. 

Ministro do Supremo tipo Marco Aurélio Mello o que será?


Urtigão (desde 1943)