Urtigão, a Realidade e o Jornalismo Factual

Estamos no tempo da comunicação automática e o foco principal na imagem. Não existe espaço no noticiário para o leitor ou telespectador fruir o pensamento. Não nos permitem sonhar (no sentido figurado) sobre o que está descrito ou nos é mostrado. Se for uma travessia na corda bamba, hoje com o nome de "slackline" o repórter tem de ir junto. Ele sente as prováveis emoções para quem assiste, se é que para brasileiros andar na corda bamba seja novidade. Andamos nela a vida inteira. É pleonasmo. 

O mesmo ocorre nos esportes e no turismo de aventura. O que no meu tempo era comum, tal como trepar em árvores, coisa comum para a molecada incomum, nos dias de hoje é aventura. Tem o nome de arborismo. Balançar na corda e cair no rio, ou deslizar por ela abaixo tem o nome de Tirolesa, esporte inventado por Tarzan, o homem macaco, criado por Edgar Rice Burroughs, escritor que criou a lenda de Lord Greistoke, sem nunca ter posto os pés na África.

A ele foi dada a chance de imaginar e sonhar. Descreve uma África que hoje não existe e um herói de tanga convivendo em paz com os animais e a natureza.

Tudo hoje se resume ao fato vivido pelo repórter ou narrador.

A televisão está lotada de aventureiros vivendo tempos extremos. Bons tempos de Lowell Thomas, de Stanley à procura do doutor Livingstone e os heróis da conquista dos pólos magnéticos. Nunca mais teremos um Amundsen, um Scott ou um Shackleton e seu "Endurance".

Lá se foi o tempo de Edmund Hilary e o Sherpa Tenzing.

O monte Everest, que tomou o nome do seu descobridor, está hoje tão poluido, quanto a baía da Guanabara. Todo ano, com ou sem mortes, muitos se aventuram montanha acima. Deixam o lixo por lá, quando não ficam mortos e mumificados, até que uma avalanche os descubra. Parte do lixo se amontoa ano a ano na respeitável montanha.

Acabou-se a aventura de verdade e o ineditismo do feito. Hoje tudo é possível e pode ser transmitido em tempo real.

Tempos estranhos, de vocabulário curto e standard. Tudo é maravilhoso, lindo, imperdível e hiper-ultra-super legal.

Tantos aumentativos para uma palavra tão desrespeitada em um país eivado de irregularidades. Um espanto !!!

Por último, cabe lembrar o fato de provar receitas em programas de culinária, ao vivo. A interjeição é única para todos os provadores:

"hummm, hummm - maravilhoso!!!"

Seja um prato feito com ora-pro-nobis, por sinal sem sabor, ou uma codorna recheada com "foie gras" salpicada de raspas de trufas brancas. Comem jiló, escargot, caviar iraniano e capim gordura refogado. A interjeição é sempre a mesma: "humm, humm"humm" .

As risadas são fartas por qualquer motivo e a choradeira com lágrimas despejadas com esguicho, parafraseando Nelson Rodrigues.

Um farto mundo irreal colocado disponível a qualquer hora, bastando para tanto um clique.

Depois de tanta alegria, tanto riso inútil, tanto choro copioso, vem a noticia real: a ONU informa que 850 milhões de pessoas passam fome no mundo. Notícia descartável, desprezada pela maioria.


Duas notas:

1) Reportagem na porta do hotel onde se hospedaria Lady Gaga. Os fãs, uma massa de desocupados de gênero incerto, ou definidos como convém ao momento atual, dão chilique, gritinhos, falam em perder a vida e voltar para casa e desprezar todo Rock in Rio. Receberam a a noticia do cancelamento da vinda da cantora.

Tão irreal que chego a pensar que voltamos para o tempo das carpideiras.

2) No meu tempo de criança, no qual podíamos sonhar, tesouros eram coisas de navios afundados, de ilhas desertas, de piratas de tapa-olho ou, no mais perto de nós, enterrados em casarões coloniais por escravos. Robert Louis Stevenson escreveu um romance famoso, que tem por título em português a "Ilha do Tesouro" . Todo tesouro que se prezasse tinha de ter um mapa. Tio Patinhas era mestre em procurá-los. Nos dias de hoje, os tesouros perderam o charme.

Vide o apartamento de Geddel Vieira Lima. Escondido em um apartamento. Nada de mapa. Fácil de achar.

Bastava acompanhar a conta d'agua ou de luz.

Mapas modernos.


Urtigão ( desde 1943) 

Urtigão é pseudônimo de José Silvério Vasconcelos Miranda, nascido em Rio Piracicaba em 1943.