Para Não Morrer na Praia - Correspondente Internacional

Sair a noite em uma quarta-feira para ver o jogo do Galo sempre foi uma rotina na família. Para mim começou cedo. Desde criança eu já acompanhava o trio Mário, Gracinda e Zé Ribeiro. Mamãe com seu boné branco na cabeça para não pegar vento. Ela que antes de sair sempre nos agraciava com um maravilhoso café reforçado para aguentar até o fim da noite. Antes de sairmos ainda gritava: “Todos cagados e mijados?” A rotina nos trazia sorte e confiança para mais um jogo. 


Nestas infinitas noites de quarta-feira que eu tive a sorte de viver, acumulei milhares de memórias, risadas, xingamentos, histórias e emoções. Os jogos começavam mais cedo. Por volta das 8 da noite. Infelizmente hoje com novela das 8 iniciando as 9 o horário mudou, e os pais, imagino, não conseguem levar a criançada nos jogos. As crianças perdem a oportunidade de crescer e vivenciar ainda jovens um pouco do mundo de verdade que existe nas quartas-feiras a noite de futebol.


Com memórias e boné na cabeça, saí das confusões do dia-dia e deixei a solidão do meu Home-Office. Liguei para um grande amigo, “Não Atleticano” e combinamos de viajar um pouco, descer a Serra para ver meu time do coração de perto, mesmo como visitante e em outro estádio.


Os Atleticanos que moram fora de Belo Horizonte vivem uma relação meio platônica com o time. É como o relacionamento com a(o) namorada(o) que mora longe. Mesmo conversando por telefone devido a distância, quando chega a hora de encontrar, uma alegria especial contagia o ar. É a paixão e a emoção em rever o amor. 


Com esse espírito contagiante iniciamos viagem em direção a Santos, litoral paulista. Vencer a primeira batalha, o tradicional engarrafamento das 5 PM da Vila Madalena até Marginal Pinheiros. Aceleremos o carro pela Marginal Tieté e logo, ao longe, apontando no horizonte, uma placa com o número da saída em direção a Rodovia dos Anchieta-Imigrantes. 


Neste momento que você respira fundo, ligar um Rock & Roll e inicia a descida, só na banguela. A Serra do Mar se apresenta grande e desafiadora a sua frente. E a Rodovia, uma obra maravilhosa da engenharia brasileira traz 44 viadutos, 14 túneis e 7 pontes para desembocar no pé da serra na cidade de Cubatão. Em menos de uma hora passamos por caminhos históricos que ajudaram a moldar a cultura, economia e os costumes da sociedade brasileira. 


Segundo Eduardo Bueno no seu ótimo livro “Capitães do Brasil", em outubro de 1532, Martim Afonso e seus homens, junto com o lendário João Ramalho, subiram a serra utilizando uma antiga trilha aberta pelos tupiniquins. Conhecida por Trilha dos Goianases, virou a primeira ligação utilizada pelos colonos portugueses de São Vicente ao topo da serra e consequentemente a São Paulo de Piratininga.


A trilha teve início na praia de São Vicente “Tumiaru”. De lá saíam embarcações que chegavam através dos rios e aportavam no ancoradouro de Piaçaguera de Baixo. Uma área alagada onde hoje se localiza a cidade de Cubatão. Iam até a Piaçagüera de Cima, no início da Serra de Paranapiacaba. Iniciava-se então a subida pela Trilha dos Tupiniquins. O trajeto seguia pelo Vale dos Rios Moji e Quilombo, aproximadamente o mesmo da primeira linha da Estrada de Ferro Santos-Jundiaí, construída no século 19 pelos Ingleses da São Paulo Railway.


Eu e meu amigo estávamos realizando o caminho reverso de Martim Afonso, estávamos descendo a história. Voltando ao início do Brasil colonial. 


Para nossa sorte a descida se transcorreu tranquila. Sem ataques de Tamoios, sem chuva na estrada, sem engarrafamento nos pedágios. A conversa fluia agradável e positiva. A cada curva conversávamos sobre como a construção do país foi muito mais difícil do que aprendemos nas escolas de todo país. E a obvia conclusão que o país ainda precisa conhecer melhor suas origens e suas virtudes.


Os portugueses, espanhóis e ingleses que chegaram e tomaram conta do “Novo Mundo”, das Américas de Vespúcio e Cabral, trocaram “espelhos” por informações com indígenas locais. Hoje infelizmente não conseguimos sair da mesmice de só enxergar “lados opostos” e apontar que “o outro” está errado. Que tal voltarmos a compreender melhor nosso território, e quem sabe até tentar a re-aprender com o passado e os sobreviventes Indígenas e nosso querido Tom Jobim a importância de balancear desenvolvimento com preservação da natureza, respeitar os limites da natureza, sem deixar de cresce. Bem, essa é uma outra história. 


O importante é que depois de passamos pelas áreas alagadas de Cubatão e pelo pelo primeiro hospital do país, a Santa Casa de Misericórdia de Todos os Santos, chegamos nas proximidades do estádio. Com sorte, achamos uma vaga em uma ruela escura e vazia perto da Vila Belmiro para estacionar. O medo obviamente de não ganhar o jogo era menor do que o de nunca mais achar nosso carro e sermos comidos por canibais locais... Nesta hora entrou em cena a querida figura do flanelinha, profissão em alta expansão. Mais uma que ganha na venda de facilidade na escuridão da noite. “Pode confiar doutor”. Disse nosso cidadão responsável de 14 anos de idade. "Sim, tome aqui seus 20 reales". Qual alternativa? Pelo menos movimentamos a economia paralela e seguimos o resto do caminho a pé, em direção ao mais feio dos estádios de futebol do país. Ainda tínhamos que achar a área dos visitantes. Sempre a de pior visão do campo e sempre com chuva na moleira.


Em campo nossa melhor escalação possível. O time do Santos com jogadores  rápidos. Cheio de jovens formados na base. Começamos jogando muito bem. Atacando sem medo. O espirito Tamoio estava presente nos pés dos nossos atacantes. Quase marcamos por algumas vezes. Desperdiçando oportunidades impossíveis. E como "quem não faz, toma" em momento de descuido, em um chute inesperado, o Santos, com sua Baleia como símbolo,  saiu na frente do placar nos pés de um jovem promissor.


“Lutar, lutar, lutar. Esse é o nosso ideal” assim chegamos ao empate. Gol. 

No início do 2o tempo viramos o jogo e ampliamos com o ataque rápido e mortal de Éder Luís e Tardelli. Assim terminamos a batalha na praia com um formidável 3x2. Assumimos a liderança do Brasileirão de 2009...



Sim. Eu estava lá durante na nossa última vitória sobre o Santos em um campeonato brasileiro.


Infelizmente a história não se repetiu desta vez. Como em uma daquelas pragas do Egito que o Faraó Keno sofreu na vida, o Galo não saiu vitorioso na baixada desta vez. Santos não tem mais Neymar, que virou K-Pop em Paris, mas se aproveitou da falha do nosso goleirão. Aos 20 minutos ele saiu como se estivesse fugindo de um manicômio, acertou o centro-avante deles na medalhinha e foi mais cedo para o chuveiro. Tivemos que rezar por 70 minutos sem parar. 


Nós trouxemos o Tardelli de 2009 de volta para o Galo em 2020, mas o destino fez Diego estar no DM (departamento médico) nesta noite fria de inverno e não pode nos ajudar. Com a garoa chegando no final da noite e 10 valentes jogadores em campo, fomos ainda sim fortes. Honramos o nome de Minas!


Não foi noite de Galo. Nosso goleiro e santo entrou, não teve a sorte de outros dias. A vitória não veio. A liderança não apareceu. As namoradas do Galo ficaram tristes. 


Para não morrer na praia e ser campeão neste ano, também vamos precisar saber perder. Aprender com os erros e renascer das cinzas. Como na música “Um Indio” do Caetano, regravada brilhantemente pelo Barão Vermelho, nosso Galo Carijó “virá, impávido que nem Muhammad Ali, apaixonadamente como Peri. Tranquilo e infalível como Bruce Lee”. 



E o ressurgimento do Galo Carijó aconteceu já no próximo jogo. Contra um outro time de São Paulo. São Paoli desta vez ouviu os deuses do futebol que tiveram que aprender a falar espanhol. “Tire de las tumbas profundas del Egito nuestro Rey Keno, el segundo”. E ele, O Rei de Ébano, entrou pela ponta esquerda como um raio, driblou 5 marcadores, olhou com calma para a área, viu livre, na segunda trave, nosso baixinho querido venezuelano Savarino, passou a bola com açúcar e com afeto e Savarino com gentileza mas força, empurrou o goleiro do RedBull com bola e tudo para dentro do gol.


Não tem mais gol fácil mais meus amigos e amigas. Já eram 42 minutos do segundo tempo. A internet pegava fogo. E o Galo do amor tinha voltado. Depois de subir a Serra do Mar paulista, ressurgíamos nas Minas Gerais.


Neste Sábado, com o time descansado, temos mais um jogo. Mais uma noite dos namorados. Nas planícies altas do centro oeste lutaremos contra uma outra tribo indígena, perigosa, sem muita historia. Os dragões de Goiânia terão que enfrentar e tentar segurar os Indios modernos do Galo Paoli. 


Uma nova batalha nos espera. Sim, será mais uma vez com muita raça e amor. Quem sabe voltaremos com a liderança no avião fretado. Quem sabe o final da noite de Sábado, será de sorrisos e alegria para toda nação Carijó.


Correspondente Internacional