A história desse título do Galo carrega tantos aspectos encravados que é difícil esgotar em poucas linhas. Primeiro ela não começa no início do campeonato anual registrando apenas a melhor performance naquele período como de costume. Começa há cinquenta anos no registro de uma outra façanha gloriosa: no primeiro título nacional conquistado também na adversidade de estar jogando fora de casa. Numa tentativa de expansão.
Decidiu o destino que esses dois momentos estariam casados. Entre eles um grande hiato. Um imenso vazio, mas não um nada, um vazio muito parecido com o do próprio universo, cheio de possibilidades. Talvez o Galo tenha sido o time que durante esse período de cinquenta anos mais seriamente disputou o título dentre todas agremiações brasileiras. Pelo menos outras dez chances reais aconteceram dele ser o número um. Se foi campeão duas vezes, em outras cinco foi o concorrente direto ao título e em mais outras seis esteve figurando nas semifinais quando o campeonato era disputado em fases mata-matas, fora as boas campanhas onde esteve entre os melhores também nos tempos modernos dos pontos corridos. Muitos desvalorizam a importância de estar sempre competindo assim em tão alto nível, disputando palmo a palmo os espaços, mesmo sem alcançar imediatamente o resultado maior. É a busca que mantêm o sonho vivo, jamais pode ser desvalorizada. Foi justamente ela que ajudou a construir a identidade de uma torcida reconhecida por todos. Aguerrida e apaixonada. É lógico que um dia materializar os nossos sonhos é importantíssimo, talvez fundamental para quem deseja ser reconhecido e valorizado como um dos bons. Ainda mais no ambiente esportivo onde a competição é a força motriz e o vencedor leva toda a glória podendo espalhar bem estar. Mas será que só o ganhador faz toda a magia? Ou é preciso que o desafiante ao título também tenha o potencial real de conquista-lo? Será que ele também não precisa ser grande para que a história seja ainda maior? Será que muitas vezes o tecnicamente melhor não termina em segundo lugar, ou terceiro. Parte do encanto do esporte reside nessa surpresa no momento da decisão, nessa imprevisibilidade do melhor confirmar seu status. Além disso, a interação entre competidores qualificados enobrece o espetáculo. Como fazer uma bela partida de xadrez, por exemplo, se o oponente não está à altura? Os lances não serão os melhores possíveis e o feito do campeão será diminuído por incompetência alheia. Será que o primeiro título nacional do Flamengo, por exemplo, o maior time em popularidade no país, seria tão mágico se o seu desafiante não fosse Forte; (E Vingador?). E será que o nosso prazer não é maior esse ano por ter um perseguidor tão qualificado e ameaçador? Gigante pela própria natureza, mas que agora finalmente temos o prazer de poder dar uma gozada maior. De coloca-los em segundo lugar, mesmo com um time tão qualificado, para fazer os eventos se casarem no tempo.
A vida tem seus mistérios, seus caminhos tortuosos, muitas vezes se faz tudo certo e o resultado não vem, nem de imediato, nem a médio prazo e é necessária uma paciência quase infinita. No caminho do Galo entre um e outro título teve de tudo um pouco, azares memoráveis, injustiças dolorosas, incompetências administrativas absurdas, que espelham a política do nosso país. Mas na alma do brasileiro, estampada na do Atleticano, qualquer brasa incendeia e existe sempre o potencial de elevar a temperatura ao ponto de delírio no anseio da conquista. Tudo se torna prenhe de possibilidades num instante e isso produz um aumento, mesmo que não seja perceptível de imediato. Essa energia sempre reabastecida carregou o time durante décadas, o alimentou e o engordou para que também se transformasse num potencial econômico alvo de investidores mais organizados. A massa fez o clube, como um povo produz a força de um país. Mas quem moldou a identidade da massa foi a história do clube. O torcedor atleticano não deve ter vergonha da escassez passada, ela faz parte de um cenário maior. Nem das comparações com outros que possuem mais. Nossa jornada é linda em muitos outros aspectos e tende a ser melhor equilibrada nestes de materialização para o futuro.
Será que interessa tanto o fato de que em 77 poderíamos ser bi campeões, apenas seis anos depois da primeira conquista? Tendo, pelas regras da época que disputar uma final sem o direito da igualdade, mesmo estando dez pontos à frente do segundo colocado. E depois de dois empates dar adeus a uma campanha invicta em cobranças de penalidades. Sem mencionar que nosso maior destaque, aquele que a torcida chamava de Rei, foi retirado da final deste campeonato por uma decisão de última hora fomentada nos bastidores de instituições permeadas por pessoas questionáveis com o poder de julgar atos desportivos lá de trás, das primeiras rodadas do campeonato, apenas quando era conveniente para impedir o perigoso atacante do Galo de estar em campo no momento decisivo. Até hoje ele detém o recorde de artilheiro na média de gols por jogo, mas não pode evitar o zero a zero na final porque foi proibido de participar. Ainda assim, cinquenta anos depois o veriam chorando na arquibancada, como observador junto a massa comemorando o saudoso e o chegado bicampeonato.
Esta oportunidade não foi a única, três anos depois, em 80, aconteceu talvez o embate dos dois maiores times que o Brasil já viu em campo na mesma época. Apenas um poderia ganhar. Além de toda dificuldade natural, o Galo enfrentou numa final fora de casa num Maracanã lotado, a vontade de uma nação de que seu adversário se sagrasse campeão. Essa vontade popular, essa potência, alimenta outros interesses que fazem parte de um jogo maior. O Flamengo daquela época não precisava de ajuda nenhuma, era uma máquina de jogar bola, com um time recheado de craques memoráveis. Mas diretores de cinema queriam fazer tudo sem erro, sem dar a menor margem de chance para que não acontecesse o que era mais desejado. Isso não tira o mérito dos jogadores do Flamengo, nem a magia que seus torcedores experimentaram. Ganharam este título e o mundo na sequência! Mas no caminho outra partida histórica e controversa com o Galo rende buchicho até hoje. A história, no entanto, se constrói do jeito que é, o acontecido é o que fica no registro e as possibilidades passadas não são tão atrativas para a mente humana, acostumada pela seta do tempo a olhar preferencialmente para frente. Todos se lembraram muito mais dos campeões de cada ano que estarão em todas listas e registros. Flamengo campeão em 80, num 3 a 2 diante de sua torcida, tão eletrizante quanto o do Galo-Bahia em 21, apesar das controvérsias daquele jogo. E campeão do mundo em 81. Muitos atleticanos pensam que se o Galo ganhasse do Fla na classificatória já seria campeão do mundo automaticamente, que esse título maior foi retirado de nós injustamente. Isso não é verdade. É até arrogância pensar assim, havia ainda muito chão pela frente. Será que o Galo teria a mesma competência do Fla para fazer três no Liverpool? Ou ganhar do Cobreloa. O Flamengo merecidamente foi campeão depois daqueles eventos censuráveis, por competência e sem ajuda a partir dali.
Parece que a programação para a torcida do Galo seria mesmo de anos de bloqueio até que fosse realmente reunida a força para incontestavelmente afastar qualquer ameaça. Uma força simbolizada no super herói Hulk, novo ídolo da massa, que teve a inteligência de saber desde o primeiro instante onde estava pisando e liderou dentro de campo um esquadrão unido, uma família, um grupo de companheiros capazes de quebrar o feitiço. Existem muitos aspectos que rodeiam qualquer evento esportivo, outras componentes estão sempre atuando, faz parte do jogo, faz parte da vida. O futebol não é exceção, muito pelo contrário, aspectos econômicos, políticos, populares, se misturam para formar o grande caldo da história. Tudo está interligado, e o futebol que assistimos não é apenas futebol, mas reflexos da vida ao redor.
Poderíamos enumerar aqui todas as vezes que o Galo teve até maior chance de ser campeão nesses cinquenta anos. Mas é melhor pararmos em 80 quando ele poderia muito bem ter sido Tri depois de nove anos apenas. Talvez o Galo precisasse desse caminho difícil para se tonar o que é, importante, mas sem precisar ostentar. A torcida precisa ter a consciência de seu valor interno e do Galo como competidor valoroso, de protagonista na história do futebol do país.
Aos que ridicularizam o fato do Atlético estar sendo Bicampeão apenas agora, o melhor a fazer é ignorá-los. Eles talvez não tenham a capacidade de realizar essas avaliações mais sutis. O Atleticano, por outro lado, deve levantar a cabeça, primeiro para curtir o momento transbordante, depois para apresentar ao mundo o orgulho de quem tem a segurança que poderia pertencer a uma comunidade esportiva com maior destaque em títulos, mas que isso não aconteceu por inúmeras razões. Muitas vezes nem a razão é suficiente para explicar a realidade. Da mesma forma que gritamos Bi campeão, existem universos paralelos em que comemoramos o tri, o tetra, o penta, o Deca. Construímos essas possibilidades e nossa força é apenas um dos componentes do jogo. O mais interessante é que essas realidades paralelas interferem umas com as outras à distância, mesmo apenas uma podendo brotar em cada canto e todas elas ecoam aqui, nesse mundo do Galo Bicampeão em 21.
Emocionante demais ter saído as ruas ontem, visto o desespero e a festa da cidade. Pisado no chão de Beagá naquele momento marcante, no meio do povo. O Galo é o time das ruas! A cidade fervilhando foi a companheira do observador solo, que acabou conversando, reclamando com desconhecidos e depois os abraçando em festa também. No jogo contra o Bahia, aconteceu simplesmente de tudo. O rival do nosso título não poderia ser melhor escolhido, será eternizado pelo jogo que fez em casa com postura exemplar defendendo sua sobrevivência na série principal, diante de sua torcida também apaixonada. A partida foi uma miniatura da história do Galo, mas dessa vez a catarse popular eclodiu de maneira surreal. Uma festa sem tamanho foi produzida e o contentamento era visto em todas as faces nos bares e ruas de Beagá. Possivelmente até em alguns rostos cruzeirenses disfarçados, mesmo que jamais assumam. Com certeza existe entre alguns deles o potencial para observar o belo sem bobagens. Uma das coisas mais fantásticas no antigo Mineirão, onde as torcidas o dividiam meio a meio, era ver a torcida adversária explodir em alegria na hora do gol. Apesar da tristeza era muito mais fácil assistir à euforia popular quando ela acontecia do outro lado, porque quando acontecia do nosso estávamos no meio da bagunça e observar era ato impossível. Mas assistindo a torcida rival se erguer em festa podíamos imaginar como era quando o monstro a qual pertencíamos se levantava. Um prazer indireto na hora da dor máxima. Tipo de coisa que só acontece com o amante do esporte.
Para os que reclamam dos tempos sem conquistas é conveniente lembrar que o contraste também produz seus efeitos. Se apenas existe o claro porque existe o escuro, é natural imaginar que quando o escuro é mais intenso, a fonte luminosa que eventualmente brota tende a ganhar ainda mais destaque. Coincidentemente, talvez até como compensação universal pelo tempo de espera, as recentes conquistas do Galo, Libertadores 13, Copa do Brasil 14, e esse Brasileirão 21, foram salpicadas de partidas memoráveis, de viradas históricas, de jogos tensos e emocionantes, de êxtase. Verdade, o Galo deixou de ganhar muitas vezes e em outras oportunidades foi impedido de chegar ao topo para produzir uma felicidade de conquista mais frequente para seus torcedores, mas quando finalmente conseguiu seus títulos, eles valeram para o Atleticano por bem mais de um. O sabor é maior para quem bebe com sede, para quem come com fome. Talvez, os que desejam programar tudo para dar aos seus times títulos garantidos ano após ano devessem pensar nesses aspectos mais finos também. Será que ganhar sempre, metade talvez por mérito, metade por favorecimento produz o melhor para o público que acompanha aquela agremiação? Será que o grito de campeão tem o mesmo sabor? Talvez os “diretores de cinema” percebam que a história mais imprevisível e gostosa é aquela onde se se deixa tudo rolar solto, simplesmente acontecendo como deve ou pode acontecer.
“Deixa acontecer naturalmente, deixa que o amor encontra a gente, nosso caso vai eternizar”.
Apenas a partir dos acontecimentos naturais é que se deve trabalhar pelo que se deseja de forma ética, responsável, lúcida com empolgação e criatividade. Operar sempre da melhor maneira sobreposto aos eventos do mundo e não forçar a barra para que aconteça o que se deseja, mesmo que se lute por isso de forma justa e aguerrida, evidentemente. Nós nem mesmo podemos saber se o que consideramos o melhor cenário é realmente o mais adequado para o futuro do mundo, além de certamente, quando realizado de maneira errada, forçada, não ser o mais inspirador.
O que o futuro reserva aos atleticanos ninguém sabe, as perspectivas são boas, tanto pelo momento, quanto pela organização em volta. Tomara que possamos beber um pouco mais desse champagne antes do novo jejum, que um dia inevitavelmente acontecerá, não somente para nós que fomos açoitados por um grande período, mas porque é simplesmente assim que as coisas são, para todos, cada hora pra um. A vida é imprevisível, mas quem toma as precauções para ampliar seu período no topo tem mais chances de adiar os tempos sombrios e quem tem humildade e força pode sempre ressurgir das cinzas. As histórias dos times tem o poder de influenciar, inspirar e até ajudar a educar o povo Brasileiro apaixonado por futebol.
Galo, sua torcida agradece, mas também deseja mais. O laço construído é forte, difícil de ser quebrado, tanto pela desilusão momentânea das derrotas, quanto pelo perigo da acomodação na conformidade inebriada dos momentos agradáveis.
Estaremos atentos. Nossa luta é por evolução.
“Lutar, lutar, lutar,
para tentarmos,
sempre que pudermos,
vencer, vencer, vencer!”
Glauco Campos Sales Saraiva